Fernando Pessoa
Vendaval
Ó vento do norte, tão fundo e tão
frio,
Não achas, soprando por tanta solidão,
Deserto, penhasco, coval mais vazio
Que o meu coração!
Indômita praia, que a raiva do oceano
Faz louco lugar, caverna sem fim,
Não são tão deixados do alegre e do
humano
Como a alma que há em mim!
Mas dura planície, praia atra em
fereza,
Só têm a tristeza que a gente lhes vê
E nisto que em mim é vácuo e tristeza
É o visto o que vê.
Ah, mágoa de ter consciência da vida!
Tu, vento do norte, teimoso, iracundo,
Que rasgas os robles — teu pulso
divida
Minh'alma do mundo!
Ah, se, como levas as folhas e a areia,
A alma que tenho pudesses levar -
Fosse pr'onde fosse, pra longe da idéia
De eu ter que pensar!
Abismo da noite, da chuva, do vento,
Mar torvo do caos que parece volver -
Porque é que não entras no meu
penssamento
Para ele morrer?
Horror de ser sempre com vida a
consciência!
Horror de sentir a alma sempre a
pensar!
Arranca-me, é vento; do chão da
existência,
De ser um lugar!
E, pela alta noite que fazes
mais'scura,
Pelo caos furioso que crias no mundo,
Dissolve em areia esta minha amargura,
Meu tédio profundo.
E contra as vidraças dos que há que
têm lares
Telhados daqueles que têm razão,
Atira, já pária desfeito dos ares,
O meu coração!
Meu coração triste, meu coração
ermo,
Tornado a substância dispersa e negada
Do vento sem forma, da noite sem termo,
Do abismo e do nada!
Não sei quantas almas
tenho
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que sogue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.
Quinto Império
MÁXIMAS, PENSAMENTOS E REFLEXÕES
Marquês de Maricá
1- Uns homens sobem por leves como os
vapores e gazes, outros como os projetis pela força do
engenho e dos talentos.
2- A beneficência é sempre feliz e
oportuna quando a prudência a dirige e recomenda.
3- O pródigo pode ser lastimado, mas o
avarento é quase sempre aborrecido.
4- O interesse explica os fenômenos
mais difíceis e complicados da vida social.
5- Os maldizentes, como os mentirosos,
acabam por não merecerem crédito ainda mesmo dizendo
verdades.
6- Há muitos homens que se queixam da
ingratidão humana para se inculcarem benfeitores
infelizes ou se dispensarem de ser
benfazentes e caridosos
7- Ninguém considera a sua ventura
superior ao seu mérito, mas todos se queixam das injustiças
dos homens e da fortuna.
8- Os elogios de maior crédito são os
que os nossos próprios inimigos nos tributam.
9- A modéstia doura os talentos, a
vaidade os deslustra.
10- Os abusos, como os dentes, nunca se
arrancam sem dores.
11- Os insignificantes são como os
mascarados, audazes por desconhecidos.
12- É tal a incapacidade pessoal de
alguns homens, que a fortuna, empenhada em sublimá-los,
não pode conseguir o seu propósito.
13- Os soberbos são ordinariamente
ingratos; consideram os benefícios como tributos que se lhes
devem.
14- O nosso amor-próprio é tão
exagerado nas suas pretensões, que não admira se quase sempre
se acha frustrado nas suas esperanças.
2
15- Não é menos funesto aos homens um
superlativo engenho, do que às mulheres uma
extraordinária beleza: a mediocridade
em tudo é uma garantia e penhor de segurança e
tranqüilidade.
16- A intemperança da língua não é
menos funesta para os homens que a da gula.
17- Mudamos de paixões, mas não
vivemos sem elas,
18- Nobre e ilustrada é a ambição
que tem por objeto a sabedoria e a virtude.
19- Quando o povo não acredita na
probidade, a imoralidade é geral.
20-A maledicência é uma ocupação e
lenitivo para os descontentes.
21- A velhice reflexiva é um grande
armazém de desenganos.
22- Sem as ilusões da nossa
imaginação, o capital da felicidade humana seria muito diminuto e
limitado.
23- O remorso é no moral o que a dor é
no físico da nossa individualidade: advertência de
desordens que se devem reparar.
24-É nas grandes assembleias
deliberantes que melhor se conhece a disparidade das opiniões dos
homens, e o jogo das paixões e
interesses individuais.
25- Duas coisas se não perdoam entre
os partidos políticos: a neutralidade e a apostasia.
====================
A Carteira
De Machado de Assis
...De repente, Honório olhou para o
chão e viu uma carteira.
Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la foi
obra de alguns instantes. Ninguém o
viu, salvo um homem que estava à porta
de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe
disse rindo:
— Olhe, se não dá por ela; perdia-a
de uma vez.
— É verdade, concordou Honório
envergonhado.
Para avaliar a oportunidade desta
carteira, é preciso saber que Honório tem
de pagar amanhã uma dívida,
quatrocentos e tantos mil-réis, e a carteira trazia o
bojo recheado. A dívida não parece
grande para um homem da posição de Honório,
que advoga; mas todas as quantias são
grandes ou pequenas, segundo as
circunstâncias, e as dele não podiam
ser piores. Gastos de família excessivos, a
princípio por servir a parentes, e
depois por agradar à mulher, que vivia aborrecida
da solidão; baile daqui, jantar dali,
chapéus, leques, tanta cousa mais, que não havia
remédio senão ir descontando o
futuro.
Endividou-se. Começou pelas contas de
lojas e armazéns; passou aos
empréstimos, duzentos a um, trezentos
a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer,
e os bailes a darem-se, e os jantares a
comerem-se, um turbilhão perpétuo, uma
voragem.
—Tu agora vais bem, não? dizia-lhe
ultimamente o Gustavo C..., advogado e
familiar da casa.
— Agora vou, mentiu o Honório.
A verdade é que ia mal. Poucas causas,
de pequena monta, e constituintes
remissos; por desgraça perdera
ultimamente um processo, com que fundara grandes
esperanças. Não só recebeu pouco,
mas até parece que ele lhe tirou alguma cousa
à reputação jurídica; em todo caso,
andavam mofinas nos jornais.
D. Amélia não sabia nada; ele não
contava nada à mulher, bons ou maus
negócios. Não contava nada a ninguém.
Fingia-se tão alegre como se nadasse em
um mar de prosperidades. Quando o
Gustavo, que ia todas as noites à casa dele,
dizia uma ou duas pilhérias, ele
respondia com três e quatro; e depois ia ouvir os
trechos de música alemã, que D.
Amélia tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo escutava com
indizível prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente
falavam de política.
Um dia, a mulher foi achá-lo dando
muitos beijos à filha, criança de quatro
anos, e viu-lhe os olhos molhados;
ficou espantada, e perguntou-lhe o que era.
— Nada, nada.
Compreende-se que era o medo do futuro
e o horror da miséria.
Mas as esperanças voltavam com
facilidade. A ideia de que os dias
melhores tinham de vir dava-lhe
conforto para a luta. Estava com, trinta e quatro
anos; era o princípio da carreira:
todos os princípios são difíceis. E toca a trabalhar,
a esperar, a gastar, pedir fiado ou:
emprestado, para pagar mal, e a más horas.
A dívida urgente de hoje são uns
malditos quatrocentos e tantos mil-réis de
carros. Nunca demorou tanto a conta,
nem ela cresceu tanto, como agora; e, a rigor,
o credor não lhe punha a faca aos
peitos; mas disse-lhe hoje uma palavra azeda,
com um gesto mau, e Honório quer
pagar-lhe hoje mesmo. Eram cinco horas da
tarde.
Tinha-se lembrado de ir a um agiota,
mas voltou sem ousar pedir nada. Ao
enfiar pela Rua. da Assembleia é que
viu a carteira no chão, apanhou-a, meteu no
bolso, e foi andando.
Durante os primeiros minutos, Honório
não pensou nada; foi andando,
andando, andando, até o Largo da
Carioca. No Largo parou alguns instantes, —
enfiou depois pela Rua da Carioca, mas
voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana.
Sem saber como, achou-se daí a pouco
no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda,
sem saber como, entrou em um Café.
Pediu alguma cousa e encostou-se à parede,
olhando para fora. Tinha medo de abrir
a carteira; podia não achar nada, apenas
papéis e sem valor para ele. Ao mesmo
tempo, e esta era a causa principal das
reflexões, a consciência
perguntava-lhe se podia utilizar-se do dinheiro que achasse.
Não lhe perguntava com o ar de quem
não sabe, mas antes com uma expressão
irônica e de censura. Podia lançar
mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida?
Eis o ponto. A consciência acabou por
lhe dizer que não podia, que devia
levar a carteira à polícia, ou
anunciá-la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto,
vinham os apuros da ocasião, e puxavam
por ele, e convidavam-no a ir pagar a
cocheira. Chegavam mesmo a dizer-lhe
que, se fosse ele que a tivesse perdido,
ninguém iria entregar lha; insinuação
que lhe deu ânimo.
Tudo isso antes de abrir a carteira.
Tirou-a do bolso, finalmente, mas com
medo, quase às escondidas; abriu-a, e
ficou trêmulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro;
não contou, mas viu duas notas de
duzentos mil-réis, algumas de cinquenta e vinte;
calculou uns setecentos mil-réis ou
mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida
paga; eram menos algumas despesas
urgentes. Honório teve tentações de fechar os
olhos, correr à cocheira, pagar, e,
depois de paga a dívida, adeus; reconciliar-se-ia
consigo. Fechou a carteira, e com medo
de a perder, tornou a guardá-la.
Mas daí a pouco tirou-a outra vez, e
abriu-a, com vontade de contar o
dinheiro. Contar para quê? era dele?
Afinal venceu-se e contou: eram setecentos e
trinta mil-réis. Honório teve um
calafrio.
Ninguém viu, ninguém soube; podia ser
um lance da fortuna, a sua boa sorte,
um anjo... Honório teve pena de não
crer nos anjos...
Mas por que não havia de crer neles? E
voltava ao dinheiro, olhava,
passava-o pelas mãos; depois, resolvia
o contrário, não usar do achado, restituí-lo.
Restituí-lo a quem? Tratou de ver se
havia na carteira algum sinal.
"Se houver um nome, uma indicação
qualquer, não posso utilizar-me do
dinheiro," pensou ele.
Esquadrinhou os bolsos da carteira.
Achou cartas, que não abriu,
bilhetinhos dobrados, que não leu, e
por fim um cartão de visita; leu o nome; era do
Gustavo. Mas então, a carteira?...
Examinou-a por fora, e pareceu-lhe efetivamente
do amigo. Voltou ao interior; achou
mais dous cartões, mais três, mais cinco. Não
havia duvidar; era dele.
A descoberta entristeceu-o. Não podia
ficar com o dinheiro, sem praticar um
ato ilícito, e, naquele caso, doloroso
ao seu coração porque era em dano de um
amigo. Todo o castelo levantado
esboroou-se como se fosse de cartas. Bebeu a
última gota de café, sem reparar que
estava frio. Saiu, e só então reparou que era
quase noite. Caminhou para casa. Parece
que a necessidade ainda lhe deu uns
dous empurrões, mas ele resistiu.
"Paciência, disse ele consigo;
verei amanhã o que posso fazer."
Chegando a casa, já ali achou o
Gustavo, um pouco preocupado e a própria
D. Amélia o parecia também. Entrou
rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava
alguma cousa.
— Nada.
— Nada?
— Por quê?
— Mete a mão no bolso; não te
falta nada?
— Falta-me a carteira, disse o
Gustavo sem meter a mão no bolso.
— Sabes se alguém a achou?
— Achei-a eu, disse Honório
entregando lha.
Gustavo pegou dela precipitadamente, e
olhou desconfiado para o amigo.
Esse olhar foi para Honório como um
golpe de estilete; depois de tanta luta com a
necessidade, era um triste prêmio.
Sorriu amargamente; e, como o outro lhe
perguntasse onde a achara, deu-lhe as
explicações precisas.
— Mas conheceste-a?
— Não; achei os teus bilhetes de
visita.
Honório deu duas voltas, e foi mudar
de toilette para o jantar.
Então Gustavo sacou novamente a
carteira, abriu-a, foi a um dos bolsos, tirou
um dos bilhetinhos, que o outro não
quis abrir nem ler, e estendeu-o a D. Amélia,
que, ansiosa e trêmula, rasgou-o em
trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor.
Fernando
Pessoa
Cancioneiro
Abat-Jour
A lâmpada acesa
(Outrem a acendeu)
Baixa uma beleza
Sobre o chão que é meu.
No quarto deserto
Salvo o meu sonhar,
Faz no chão incerto
Um círculo a ondear.
E entre a sombra e a luz
Que oscila no chão
Meu sonho conduz
Minha inatenção.
Bem sei... Era dia
E longe de aqui...
Quanto me sorria
O que nunca vi!
E no quarto silente
Com a luz a ondear
Deixei vagamente
Até de sonhar...
Abdicação
Toma-me, ó noite eterna, nos teus
braços
E chama-me teu filho. Eu sou um rei
que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços
Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia
Abismo
Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando —
O que é sério, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco —
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo — eu e o mundo em redor —
Fica mais que exterior.
Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...
E súbito encontro Deus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário